[Entrevista] Um exemplo de espirituosidade e amor à arte, à música, aos esportes e às crianças
Entrevista concedida em 8 de abril de 2007
Este homem, forte e sensível, mostra-nos um espírito alegre e otimista, dando exemplo de amor e compaixão. Saiba um pouco sobre Mirim Santos e seu dedicado trabalho de professor, ou melhor seria dizer: de mestre, que é fazer as crianças crescerem com dignidade e alegria.
Mirim conta para a gente um pouco da sua historia.
- Eu vim de Ouro Preto, de uma família muito humilde, meus pais são descendentes de escravos, uma família que morou num lugar muito difícil, muito acidentado, num lugar aonde não chegava nenhum carro, mas minha família me criou com muito sacrifício, mas estou aqui hoje, representando Ouro Preto. E cheguei em Pirenópolis em 1997 para compor a equipe responsável pela restauração da igreja, e, logo depois que encerraram os trabalhos, eu senti uma necessidade de fazer algo por Pirenópolis, a nível de pintura e também da capoeira, que eu pratico a 24 anos. Mas pra mim é mais forte ainda ter chegado aqui com a pintura, porque eu cheguei aqui para trabalhar com a restauração e por ter vindo de uma cidade que tem tantas igrejas para restaurar e monumentos. Ter vindo para uma cidade do interior que não era tão reconhecida no Brasil, isso pra mim foi importante, porque eu fui o pioneiro em Pirenópolis na arte de desenhar na rua. Eu já fazia isso em Ouro Preto e aqui precisa fazer, já estão fazendo 10 anos que estou aqui em Pirenópolis e até hoje não tem artista na rua desenhando, pintores na verdade, a cidade ainda não tem esse lado bonito de ter pintores retratando para que a historia possa ser passada para outras pessoas. E não só isso, a pintura também faz parte da preservação, cada vez que você pinta é um registro do que tem e pode deixar de existir futuramente, então a importância de um artista na rua de um escultor, desenhista, gravurista é muito importante para a cidade.
- Tem uma coisa que também me deixa muito feliz de estar em Pirenópolis, é estar envolvido com projeto social, que também está comemorando 10 anos. Assim que cheguei senti uma enorme vontade de praticar esportes e vi também que as crianças da cidade estavam muito na rua. Então comecei um projeto denominado "Na Rua com Arte", no qual eu ensino capoeira, pintura e batucada de percussão, ritmos brasileiros para as crianças da comunidade, que tem abrangido todos os bairros da cidade, os quatro cantos da cidade, num total de 450 crianças inscritas, 2 escolas, um programa social que é o PETI (Programa de Erradicação do Trabalho Infantil), creches, a Aldeia da Paz, e também trabalho com crianças excepcionais, crianças portadoras de necessidades especiais, que pra mim é mais forte ainda poder trabalhar com essas crianças numa cidade de interior na qual você não vê os excepcionais. Que você sabe que a cidade tem excepcionais, mas as pessoas não caminham com eles, ainda existe um grande preconceito. Eu acho que está sendo uma missão pra mim, um trabalho pra mim, tão físico, mental, e também muito espiritual. Acredito que é mais espiritual ainda minha presença na cidade, porque é uma cidade muito religiosa até bem forte na parte dos evangélicos, é mais forte os evangélicos do que o catolicismo e essas religiões, como todas as religiões, as vezes causam um impacto muito grande na cidade, afastam muito as pessoas do seu esporte e, as vezes, até mesmo da sua própria cultura porque as pessoas são muito necessitadas, carentes e, as vezes, procuram a igreja em vez de procurar uma atitude, praticar um esporte, buscar uma concentração ou até mesmo se entregar a uma religião de coração. Então eu senti que o trabalho também está envolvido com um trabalho espiritual. As crianças estão precisando de paz, existe muito alcoolismo, muita droga nessa cidade, muita violência, não parece, mais tem. E com a capoeira, com a arte e com a música, que são as três coisas que eu faço, eu posso fazer alguma coisa de bom por essa cidade, essa é a ideia, e esse ano vou estar comemorando 10 anos e tenho que bater forte nessas 3 teclas que são a pintura, a capoeira e a percussão. Ando passando por uma resistência também: a cidade, como eu devo respeitá-la, não teve nas suas tradições a capoeira, o carnaval, a percussão, apesar de ter a Banda de Couro e a Banda Phoenix, que é uma banda de musica, mas a cidade de Pirenópolis ainda não tem a tradição de capoeira, a tradição de uma banda de música de percussão, de carnaval, e essas coisas tem que chegar, em qualquer cidade do Brasil chegou e ficou e aqui vai chegar, já chegou e vai ficar porque é importante, é cultura, é Brasil, aqui não é diferente de lugar nenhum do Brasil, aqui faz parte do Brasil e nós temos que plantar a semente brasileira aqui, a semente do Brasil tem que ser semeada em todos os cantos do Brasil e Pirenópolis é um cantinho do Brasil que está precisando crescer muito, abrir muito o conhecimento, é uma cidade maravilhosa que eu só tenho que elogiar, não tem nada que me afeta nessa cidade, muito pelo contrário, tudo que vem de ruim, é para que eu possa fazer com que eu cresça mais ainda.
E em relação à pintura, que técnicas você usa?
- São varias técnicas, desenho a lápis é o principio de tudo, desenho a lápis e a carvão e depois vêm as aguadas, aguadas de nanquim. Trabalho em preto em branco, depois a gente passa para aquarela, daí surge o óleo sobre tela, que é um processo mais elevado e logo após vem o trabalho de acrílico sobre tela e também a arte moderna. Mas agora eu estou trabalhando a perspectiva dos casarios de Pirenópolis em varias técnicas, aguada de nanquim, bico de pena, aquarela. Mas a idéia é registrar a cidade em preservação para que ela continue de pé, desenhar os casarios para que eles continuem vivos.
Você tem uma relação muito interessante com as crianças, você tem alunos na área das artes plásticas?
- O que acontece é o seguinte: pelas crianças me conhecerem e ao ver que estou pintando, elas sentem um interesse pela pintura, até porque crianças e jovens tem uma facilidade muito grande para trabalhar com a arte, mais do que os adultos, porque a sua mente está bem aberta. A criança está em fase de crescimento, se você fizer o trabalho com as crianças, com certeza elas serão futuros artistas, já são, porque todos nós quando criança já fizemos algum rabisco, algum traço, já desenhamos em casa e com o tempo, pela questão da sociedade, extravasa. Essa vida oprimida que a gente vive, a gente vai largando as coisas de lado em busca de outras coisas, e as crianças naturalmente vão virando artistas e agora vai ter um projeto que chama \"Na Rua com Arte pintando Pirenópolis\", que é justamente para pegar as crianças que tem algum talento, que estão iniciando. E tem vários desenhos que as crianças fazem que elas vão guardando, me mostrando, me dando que estamos aí, juntando mais tarde para fazer uma exposição para mostrar esses talentos que estão surgindo.
Você também faz um trabalho muito legal com as crianças em relação ao esporte, a capoeira, que agente vê você se apresentando, já é um trabalho consagrado aqui em Pirenópolis. E como foi o desenvolvimento desse trabalho, que resistência você encontra, já teve algum fruto assim que vale a pena dar um destaque?
- Foi importante essa pergunta, porque no trabalho na cidade de Pirenópolis eu encontro uma resistência, até porque não tem muita gente trabalhando com projetos sociais, tem algumas ONGs trabalhando e a maioria das pessoas que estão trabalhando com projetos sociais são de fora. Tem um certo bairrismo na cidade, porque acham que existe um interesse, não só financeiro, mas as vezes um interesse político da nossa parte. Mas não as pessoas que estão aqui e são de fora que estão trabalhando de coração, como eu, a maior dificuldade que eu encontro aqui, na verdade, é a falta de material, especifico para pintura, a tinta, o pincel, que as casas de materiais artísticos ainda são as papelarias, mais materiais escolares, essa é a maior dificuldade, mas a gente tem trabalhado com material reciclado, fazendo pena de bambu, usando até pigmentos que agente compra nas casas de materiais de construção, têmpera vinílica, que é misturar tinta Suvinil com pigmento Xadrez para fazer a própria tinta, tem essas pequenas dificuldades mas a gente vai vencendo.
E você sabe com quantas crianças em media você está trabalhando hoje em dia?
- Atualmente, contando só em uma escola, tem 200 crianças, que é a Escola do Carmo. Agora tem a Luciano Peixoto, que é a ultima escola da comunidade do Bonfim, quase do lado da mata, e nessa escola estou com 50 alunos. E tem também uma outra escola, que é a Escola da Lapa, também com 50 alunos. E o PETI com 60, sem contar ainda as crianças de vários lugares que eu visito na cidade, são um total de mais ou menos 450 inscritos e de 300 praticantes.
E a faixa etária destes praticantes?
- Vai de 2 até 15 anos. Eu escolhi essa idade porque ao chegar a adolescência as crianças tem tendência de escolher o que elas querem fazer e começam essa fase de auto-escolha. Como o projeto diz "liberdade de expressão", o garoto deve vir para a aula no dia que ele estiver bem e ir embora na hora que ele estiver a fim, não tem nenhum compromisso, ninguém assina nenhum papel. O projeto totalmente liberdade de expressão, liberdade sem medo, deixar que a criança venha no dia que ela realmente queira, para que assim ela possa voltar bem do mesmo jeito que ela foi embora bem, essa é a ideia, porque tudo que se obriga vira escravidão. Se eu obrigar um garoto a vir para a capoeira, ele vai deixar de gostar da capoeira e ver que isso é um compromisso e crianças e jovens não devem ter compromisso, só com a escola, com a leitura, e com seus pais. E eu acho que o esporte não deve ser compromisso, deve ser a atividade da vida dele, o relaxamento, tem de ser lúdico, essa é a ideia mais forte: trabalhar a questão do lúdico, da brincadeira, que a vida tem que ser uma brincadeira, que mais tarde eles terão seu momento de trabalho e seriedade, mas que a si mesmo toda pessoa que é seria é uma pessoa que foi dominada, que é dominada, você é brincalhão, ele não vai ser dominado pela política, não vai ter ambição, não vai ter ego, realmente a gente tem que ser brincalhão, alegre, porque a vida passa muito rápida e a gente não tem tempo para fazer tudo o gostaria de fazer. Essa e a ideia do projeto: soltar os meninos, do mesmo jeito que eles chegam eles vão.
E qual é a classe social da maioria desses meninos?
- Infelizmente por um lado, e felizmente por outro, a maioria das crianças vem da parte carente da cidade, vem do Bonfim, do bairro que para algumas pessoas é um bairro pobre, mas pra mim é o bairro mais rico, porque é lá que estão as misses Brasil, os artistas, jogadores de futebol, como em qualquer lugar que já se ouviu falar em favela, que a favela tem pobre, que a favela é um lugar ruim, nada disso, o Bonfim não é favela, o Alto do Bonfim é um lugar legal e não só o Bonfim. Como eu trabalho com as periferias, é Alto do Bonfim, Alto da Lapa, Alto do Carmo e JK, são os quatro cantos da cidade, mas para mim são os lugares onde tem os garotos mais feras, infelizmente os garotos que mais procuram a capoeira são os garotos da última rua, tem garotos que vem da última rua para a capoeira, mas eles vem com muita vontade, enquanto tem gente que mora no centro e tem condição de pagar e não pagam, mas isso já é uma questão do Brasil, isso não é só em Pirenópolis é em qualquer outra cidade, as pessoas que tem condições de pagar não praticam enquanto as pessoas carentes estão aí esperando que as pessoas deem pra eles, isso que é legal, eu estou aqui para fazer isso, é o que me segura em Pirenópolis, eu tenho é que, cada dia mais, subir o morro mesmo e lá atrás das igrejas, atrás das casinhas, porque é lá perto do morro que tem os melhores talentos de Pirenópolis.
E entre esses meninos, já teve algum que se destacou?
- Já, vários garotos, tenho garotos aqui que na verdade já viraram adultos, que estão com 19 anos, começaram com 11, que já participaram de vários campeonatos, já ganharam troféus, medalhas, vários alunos já foram entrevistados, saímos no Esporte Espetacular 30 anos. Tem uma coisa interessante: tem alunas que já são mães e elas levam suas filhas para a capoeira, então estamos aí com uma segunda geração da capoeira, isso que é uma das coisas mais importantes, esses são os maiores destaques pra mim. Tem uma outra aluna que também é bem interessante, que começou a fazer capoeira e que formou em Educação Física, e foi incentivo da capoeira, agora ela é competidora de triatlo, corre por uma equipe de Goiânia. Isso pra mim é um troféu, poder ver um aluno que nem capoeira está mais praticando, mas está fazendo outro esporte, ou seja, se não houvesse a capoeira aqui quem sabe ela poderia não estar fazendo esse esporte que ela está fazendo agora, que é o triatlo. Uma coisa pode ter aberto caminho para outra, isso que é interessante. Não é que a capoeira tenha que ser feita aqui em Pirenópolis, ela tem que ser feita em todo lugar do mundo, para que ela seja mais uma porta a se abrir para que se possa ter mais esportes. Se a capoeira pode afetar alguém para dar continuidade na vida dele como atleta, esse é meu interesse, não é só formar alguém, as pessoas na verdade se formam, com a busca, com a vontade delas, ela vai se formar, vai ser um professor, um instrutor ou um mestre, um dia, a busca é de cada um, eu estou aqui só pra despertar, sou só um espelho aqui nessa cidade e é o que eu mais tenho conseguido fazer.
E você começou na capoeira onde e com quem?
- Eu comecei em Ouro Preto, em 1983. Eu estava alcoolizado andando pelas ruas, com 13 anos de idade, bebendo, encontrei alguns capoeiristas e eles me ajudaram, a capoeira me resgatou. Hoje eu sou vegetariano, não bebo, não fumo, agradeço tudo a capoeira e ao meu mestre, que é o Zé Eduardo, que me iniciou na capoeira, e logo depois o mestre Miguel Machado, da Bahia, que é o fundador do nosso grupo, que chama "Grupo Cativeiro de Capoeira", ele já me deu a corda de professor e depois em deu a corda de contra-mestre, que ganhei aqui em Pirenópolis em 2001. E ando seguindo a capoeira, esperando que um dia eu possa segurar a corda de mestre, porque eu ainda não sou mestre, estou me formando para mestre. E a capoeira que a gente pratica é uma capoeira que fala das raízes afro-culturais do nosso país, a nossa resistência da cultura afro-brasileira, essa é a nossa pesquisa, para que não se perca a nossa bagagem cultural que veio da África, que veio semeada aqui nesse Brasil e nosso trabalho está presente em 16 estados brasileiros e 21 países. Isso que é uma das coisas mais fortes, isso é importante. Hoje a capoeira está sendo espalhada para vários lugares no mundo e nosso lema é: "Grupo Cativeiro de Capoeira - Para não ser cativo de ninguém". Para que nenhuma criança, nenhum negrinho, nenhum branquinho, nenhum moreninho, nenhum japonês, nenhum alemão seja cativo de ninguém.
E você também sai no carnaval com a Banda do Mestre Mirim. Como foi o processo do surgimento dessa banda?
- É. O carnaval foi uma ideia de um projeto que surgiu em 1997, para que se realizasse um bloco no carnaval em 1998. Aí não havia pessoa para ministrar a percussão, então comecei a ministrar a percussão para que surgisse esse bloco com a ideia de limpar a cidade, muito bonito o projeto, o Urgente Reciclar. Logo depois que fizemos o primeiro carnaval e o segundo carnaval, em 1999, eu vi a ideia de fazer uma bateria exclusiva da capoeira, para que a gente pudesse valorizar não só a percussão que existe dentro da capoeira mais também fazer um grupo folclórico que pudesse fazer alguma coisa no carnaval para alegrar a cidade. Aí surge a banda de percussão das crianças, que chama Banda Luanda. Na verdade, essa banda tem um nome que a gente vai representando aos poucos que chama Banda Luanda em homenagem aos negros de Angola e Luanda, que é o lugar de maior sofrimento no mundo, aids pra caramba, e que foram nossos semeadores, foram eles que semearam essa cultura no Brasil, a eles devemos todo respeito, toda a gratidão do batuque que temos aqui no Brasil. Então essa é a Banda Luanda, que já tem 10 anos fazendo o carnaval de Pirenópolis e já estamos ensaiando para o carnaval do ano que vem, porque o ano passa muito rápido e as crianças também estão sendo apresentadas. Cada vez que uma criança toca no carnaval, ela deixa de catar uma lata e deixa de ficar na rua vendo o que as pessoas então fazendo. Elas são assistidas, aplaudidas e chamadas de artistas e isso é importante porque mais cedo ou mais tarde ela pode estar tocando em uma banda, pode estar tocando mesmo na própria Banda Phoenix, que é uma banda da cidade, na área da percussão. Essa é a ideia: somar o que já existe na cidade, aqui já tem sua percussão, que é a Banda Phoenix. Só falta o que? a Banda Phoenix sair também e tocar no carnaval. Já esta sendo feito, ela tocou marchinhas de carnaval, é isso que precisa: arte tem que estar na rua. Dentro de casa fechada, ninguém vai ver a arte.
Para fazer contato com Mirim Santos, procure-o ao lado da Igreja Matriz, onde expõe seus trabalhos e pinta ao ar livre, aos sábados, domingos e feriados, ou pelo telefone (62) 9949 7099
Entrevista concedida no dia 08 de abril de 2007.