O sábio que fez de tudo um muito
Por Luiz Ernesto Wanke*
Ele tinha vários nomes: Dr. Francisco, Padre Henrique, Degenettes,.. O nome completo brasileiro foi Raymundo Henrique dês Genettes e o de origem francesa, François Henry Trigant dês Genettes. O leitor já ouviu falar? Pois lhe apresento um francês, naturalizado brasileiro, que cuidou da saúde de nossos cidadãos como médico, da alma de seus paroquianos como sacerdote e da paisagem como naturalista pioneiro. Levantou as bases geológicas de Minas Gerais e do Planalto Central (antes da Comissão Cruls), mediu pela primeira vez a altura do Pico da Bandeira, descobriu minas de ouro e jazidas de diamantes (como a Bagagem Diamantina onde viveu em seu famoso lupanar Dona Beija de Araxá e também ali foi achado o diamante Estrela do Sul, até hoje um dos maiores do mundo), foi um liberal ativo e de origem que lutou nas revoluções francesas de 1830 e na mineira de 1842, sendo preso nesta última Como político foi um dos fundadores do Partido Liberal e em Uberaba foi promotor público, delegado de polícia, presidente da Câmara Municipal culminando com o cargo de prefeito. Escreveu livros e peças teatrais, fundou a cidade de Santo Antônio do Cavalheiro em Goiás, foi professor e fundou o primeiro colégio em Meia Ponte (Pirenópolis), descobriu a Cidade Perdida (hoje chamada de Cidade de Pedra (a Vila Velha de Pirenópolis), achou fósseis de animais gigantes que descreveu para o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e no final da vida, foi sacerdote da Igreja Católica na região do hoje Distrito Federal. E por aí vai... Não foi um cara que “fez de tudo um muito” como lhe definiu o notável historiador Paulo Bertran?
Genettes viveu num Brasil muito jovem, desde 1835 - quando foi expulso do navio francês Minerva por ter matado em duelo um colega oficial de bordo - ainda na época da Regência de Feijó até sua morte em 1889. Chegou a ver a abolição, mas não a queda do império.
Como jornalista foi pioneiro. Ele mesmo conta: “em 1874, fundei em Uberaba, a primeira imprensa do sertão, o jornal liberalíssimo O Paranayba, que depois teve seu nome mudado para Echo do Sertão.” Se o leitor tiver muita curiosidade pode ler na internet o seu primeiro número.
Seu jornal promovia campanhas, principalmente em favor do melhoramento da região, tirando-a da invisibilidade - como dizia - e promovendo seu progresso. Foi numa dessas campanhas que se mudou o nome primitivo de Sertão da Farinha Podre para Triângulo Mineiro. O termo “farinha podre” provinha do costume dos viajantes pendurarem sacos de farinha nos galhos das árvores do sertão, para na volta, aproveitá-los. Quando esquecidos, a farinha apodrecia. E a denominação “Triângulo Mineiro” permanece até nossos dias. Desanimado com o abandono, Genettes também defendeu a independência da região – que já fora de Goiás - e sua anexação à Província de São Paulo.
Um mergulho em busca do ouro
Era um arguto observador e seu texto próprio de um bom jornalista. Como no trecho ainda inédito abaixo, tirados de seu diário, quando em 1880 estava no Rio Bagagem em Goiás, perto da vila do Muquém onde se faziam romarias dedicadas a Nossa Senhora da Abadia (vide o romance “O Ermitão do Muquém” de Bernardo de Guimarães):
“O Rio Bagagem nasce nos altos platôs da Serra da Mangabeira, corre para o norte e é um dos tributários do Rio Maranhão. Riquíssimo em ouro foi muito trabalhado, mas para baixo do lugar onde atravessei, as serras se apertam e as aguas correm numa bica formando rápidos e uma queda d’água. O senhor Dionísio, sacristão da igreja do Muquém, foi há anos como alguns outros parentes e companheiros, trabalhar de mergulhador.
O mergulho se faz da seguinte maneira: o mergulhador, inteiramente nu, leva consigo um saco de couro cuja boca tem um círculo de ferro ao qual está amarrada uma corda feita de casca de cipó de imbu. Tudo preparado, o mergulhador ata aos pés uma laje e se deixa escorregar por uma corda onde os companheiros seguram, chegando até o fundo do rio. Desata a pedra e com os pés arrasta o cascalho do rio para a boca do saco, dá sinal aos companheiros que puxam a corda e o fazem surgir à flor d’água. Depois, puxam o saco com as pedras.
Assim praticava Dionísio, demorando-se cerca de três a quatro minutos debaixo d’água. Quando finalmente sai, fica sufocado, levando um quarto de hora para se restabelecer. Tiram então o saco da água e derramam o conteúdo sobre o couro para tirar água com areia e apurar o conteúdo da bateia. O resultado da operação foi uma folheta de ouro de 44 oitavas que foi vendida ao senhor José Joaquim da Silva. Era um pedaço de ouro que tive em minhas mãos, arredondado e sobre as arestas tinha um decímetro de comprimento e quatro centímetros de largura. O couro tinha trazido mais de 12 oitavas de ouro em folhetos e pepitas, de diferentes pesos e 15 oitavas em ouro em pó. Num mergulho tinha rendido 71 oitavas de ouro, no valor de duzentos e oitenta e quatro mil reis. Por esta narração é fácil se julgar a riqueza do Rio Bagagem.”
Nossos índios chineses
Seu senso de observação era notável. O outro trecho abaixo, foi retirado pelo autor de seus manuscritos - diário de viagens - quando em 1836 fazia a viagem inaugural no Brasil, do Rio até Ouro Preto, onde trabalhou e viveu até a Revolução de 1842. Naquela ocasião, Genettes desviou-se do seu caminho para visitar uma tribo de índios coropós, bem no nordeste de Minas, na altura das nascentes do Manhuaçu, ainda virgem da influência dos brancos:
“Durante os poucos dias que estive com os coropós encontrei os seguintes vislumbres de religião: acreditam num espírito bom que eles chamam de Araia e num mau que chamam de Entzone. Também que os coropós acreditam na transmigração da alma, outra crença vinda da Ásia.
Na primeira palavra que me fiz repetir muitas vezes encontro um vocabulário verdadeiramente sânscrito. Uma exclamação, porém escapada de uma menina vem me confundir:
- “Tao”! Brada.
Ignoro o significado, me dirijo ao coropó civilizado (seu guia que falava português) e lhe pergunto o significado. O índio me olha admirado e me pergunta quem me ensinou este nome. Respondi que ouvi, mas não notei de quem. Então, meu guia com olhar misterioso responde:
- “Tao tububiscu... Tao é Deus e tebubiscu é trovão... Logo, Deus do Trovão!”
Fico absorto, três letras me puseram fora de mim: Tao em ecualdunak (dialeto basco de origem sânscrita) é o nome venerado de Deus, o jeová dos Hebreus, é o Tezeu do sânscrito, ou, antes, o Zeus e o Theos do Gregos. Finalmente, como conhecemos é o Deus onipotente. Guilherme de Humbolt diz ter encontrado em dialeto dos índios palavras ecoares e não é possível encontrar mais notável prova. Estou convencido que não foi a influência da civilização, porque os padres não sabem ou não usam este nome para significar Deus. Então de onde vem este conhecimento? Duas palavras nativas e primitivas voaram nas asas do vento através do Pacífico, sobrepujaram os Andes e vieram se estabelecer sobre as florestas do Continente? Impossível! A explicação que encontro é a de que através de tantos séculos há uma ligação hoje desconhecida que se prende às raças asiáticas. Esperemos: o tempo e o estudo hão de me ilustrar.”
Com respeito a este magnífico texto há que se fazer alguns comentários: 1) pesquisei e achei o termo correspondente para Araia no sânscrito e nesta língua – a mais primitiva da humanidade – esta palavra significa “espírito nobre”. 2) Embora não cite o nome, tudo leva a crer que o guia de Genettes era Guido Pocrane, o índio coropó que o sertanista Guido Marlière aculturou, deu seu nome e era seu braço direito (hoje ambos, Marlière e Pocrane, são nomes de municípios em Minas Gerais). Mas por que Marlière entrou nesta história? É que Genettes na ocasião estava hospedado na Fazenda Guidoval e dali partiu para visita à aldeia coropó. 3) A hesitação e o espanto do índio guia era de receio por causa da reação provável de Genettes, já que esse índio tinha sido convertido ao catolicismo e estava esclarecendo dúvidas sobre a religião primitiva da tribo. 4) Este episódio foi o estopim para que – eu e meu filho Marcos Luiz – concluíssemos que nossos índios tinham resquícios do taoísmo – portanto, sendo de origem chinesa – e escrevêssemos o livro “Brasil Chinês”. Claro que não foi somente este episódio, mas sim uma longa pesquisa de dez anos até acharmos uma prova definitiva: um geoglifo pré-colombiano e desenhado em cima de montanha, num deserto norteamericano reproduzindo exatamente o ideograma chinês shan, no estilo kaishu, também significando montanha, um dos elementos de reverência religiosa do povo chinês desde a antiguidade até hoje.
Um sábio esquecido?
Em 1875 morreu sua mulher e desolado, Genettes foi ser padre no Planalto Central. Vendeu seu jornal, abdicou dos cargos que tinha em Uberaba, mas seu espírito jornalístico continuou em plagas goianas. Publicava seus escritos nos jornais Província de Goiás e Publicador Goiano. O carro chefe de suas ideias nesta época era o que chamava “Estudos Pré-Históricos” que trouxe a Genettes muitos aborrecimentos devido à oposição de seu bispo que achava o tema “heterodoxo e muito perigoso”. Dos apontamentos que tenho, o mais importante foi a teoria de que a Lua teria sido arrancada da Terra por um asteroide que se chocou a ela em tempos muito remotos. Amostras de rochas trazidas pela Apolo 16 confirmaram a hipótese de Genettes. Outra observação foi da notável horizontalidade dos montes goianos, determinados – segundo os mesmos estudos – por um cometa que passou muito perto da Terra e pelo atrito e gravidade, derreteu as calotas polares, elevando os níveis do mar até a altura daquelas montanhas, nivelando-as.
Foi um sábio? Quanto a isto deixamos que ele mesmo se defenda:
“Não sou um sábio, sou apenas um simples e obscuro erudito que trabalha por amor à ciência, esforçando-me para levantar um canto do véu da natureza e melhor conhecer o Pai celeste, que se revela a nós pela perfeição de sua obra. Gostaria de levar uma pedrinha ao edifício glorioso.”
*Luiz Ernesto Wanke, professor e escritor, junto com seu filho Marcos Luiz Wanke publicaram recentemente o livro Brasil-Chinês, pela Editora Lewi. Os manuscritos de Genettes foram comprados em 1978 num pacote de documentos históricos pelo autor e seu filho Marcos Luiz numa loja de coleções de Curitiba.