17 de março de 2012
Cavalhódromo: Ignorante descaracterização ou nova forma de domínio
Ainda é viva na memória dos pirenopolinos a manifestação dos mascarados em 2011 contra a numeração, provando com isso o valor do patrimônio cultural e o motivo pelo qual a Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis foi tombada como Patrimônio Imaterial Brasileiro. Motivo este de tombamento de ser tal festa promovida pelo singular e original caráter popular, onde o povo faz a festa, mesmo sem influência ou patrocínio institucional, seja público ou privado. Não que não seja importante o apoio institucional, até mesmo sob forma monetária. Ora! sem dinheiro ninguém faz nada. Mas, por se tratar de festividade popular, que é definida como popular por ser promovida pelo povo, quanto menos interferência de instituições, mais popular a festa é. E esse é o verdadeiro valor da festa e o motivo primordial de seu tombamento.

No momento em que políticos e empresários tentam se apossar da festa com interesses diferentes daqueles festejados, esta primordial característica enfraquece. Como é o caso do cavalhódromo. É vidente que quem o projetou não tinha a mínima noção do que é uma cavalhada. Acho que este engenheiro ou arquiteto pensou que a cavalhada era como um futebol ou um teatro de arena onde a platéia passiva assiste os atores ativos no campo ou no palco. Desconhecia este que numa festa popular o ator ativo é o povo. Quem faz a festa é o povo e o povo é a festa. E a festa acontece tanto fora do campo como no campo. Ou será que não faz parte da festa o assédio dos mascarados nos camarotes? O vai e vem da população, do ranchão para o campo e do campo para a rua? Quem, anos após anos, frequenta os camarotes sabe que a maior parte do tempo a atenção está fora do campo e da batalha. Até mesmo porque esta é repetitiva e enfadonha. O divertido mesmo é o relacionamento popular. Os docinhos de coco e os guaranás. O "me dá um dinheirinho aí" dos mascarados.
Neste projeto que aí está não consideraram os projetistas esta faceta da festa e o volume de pessoas que circulam pelas arquibancadas e camarotes. Tanto que o espaço de circulação é muito aquém daquele necessário. Neste esfacelado projeto, perdeu-se um desenho importantíssimo que retratava as divisões sociais e a integração entre elas: que eram os camarotes próximo ao campo, erguidos do chão em um nível superior, ocupados pelas famílias tradicionais, reservados, particulares e hereditários. Abaixo destes, os vãos inferiores no nível do piso, por onde circulavam o povo e os mascarados e eram vendidos churrasquinhos e bebidas. Esse tipo de hierarquização refletia a sociedade e suas relações. Todo esse sistema circundava o campo, o centro de tudo, onde é disputado a eterna luta do bem contra o mal, a dramatização da dualidade cósmica e aparente. Oriente X ocidente. Vermelho X azul. O eu X o outro. Na antiga forma ninguém se distanciava deste embate. Mascarados circulavam livremente a poucos metros dos cavaleiros e os cavaleiros tinham acesso direto aos camarotes. Aí sim víamos o verdadeiro espírito da festa, o Divino Espírito Santo, que apesar de haver diferenças estávamos todos juntos num mesmo ambiente de confraternização.
Destarte hoje com este cavalhódromo substituíram o espírito por cercas, muros e distâncias. A afirmação da soberania tornou mais evidente e cruel. Lá no alto, a quase não mais se enxergar fizeram os camarotes das autoridades. Longe do povo e impondo uma pesada sombra sobre o campo, apagando as cores e o brilho da festa. Afastaram o povo do campo e impediram sua circulação e seu trânsito aos camarotes. Se antes a estratificação social, simbolizada pelos diferentes níveis dos pisos do campo e camarotes, era em praticamente dois níveis, hoje esta estratificação ficou mais evidente, maior e mais distante.
Mas de fato, pergunto: Será isso apenas uma ignorante falta de conhecimento dos projetistas ou uma deliberada nova forma de dominação, que afasta o povo do palco da festa e levanta um totem majestoso à glória do governador? Será este um novo símbolo de dominação, mais cruel e imponente? Porque o povo de Pirenópolis não se manifesta contra, como fez com a numeração dos mascarados? Será, então, que há uma anuência implícita a esta nova forma de poder e hierarquização? Se for assim, é certo que os tempos mudaram, mais forte que a tradição é o poder de dominação, que, de todo modo, faz parte de nossa tradição.
Matéria publicada em 17/03/2012 às 17:12:24.